Espalhadas pelos quatro cantos do planeta, grandes cidades são consideradas um dos principais fortins da desigualdade e da insustentabilidade. As duas maiores cidades dos Estados Unidos, Nova Iorque e Los Angeles, são também as duas cidades mais desiguais do país enquanto que um terço das pessoas mais pobres do Reino Unido vive em Londres. Somando-se a isso, segundo dados publicados pela C40 Cities, dois terços da energia consumida no mundo e 70% das emissões globais de carbono são atribuídos às cidades. Como arquitetos e urbanistas, estes dados nos fazem refletir sobre como políticas públicas e estratégias de planejamento urbano poderiam ser utilizadas para melhor combater esses dois graves problemas. Como resposta, dezenas de cidades ao redor do mundo têm investido em sistemas de mobilidade urbana mais eficientes, abrangentes e sustentáveis. Neste contexto, levantamos a seguinte questão: e se o transporte público fosse gratuito?
Atualmente, aproximadamente 100 cidades do mundo todo já oferecem transporte público gratuito à seus cidadãos, a maioria delas na Europa. O futuro do transporte urbano — individual e coletivo —, tanto do ponto de vista operacional quanto arquitetônico, tem provocado um crescente interesse entre a comunidade de arquitetos e urbanistas ao longo dos últimos anos. Como recentemente relatado pelo ArchDaily em matéria sobre as principais tendências da arquitetura em 2019, o site constatou um aumento de 206% nas visualizações de artigos relacionados ao transporte público em relação a 2018, juntamente com um 143% de aumento no número de leitores de artigos relacionados à mobilidade.
São inúmeras as razões pelas quais o acesso ao transporte público deve ser incentivado. Segundo a American Public Transportation Association, cada dólar investido em transporte público gera cerca quatro dólares de retorno econômico, isso quer dize que um investimento na casa dos dez milhões de dólares em transporte público é capaz de provocar um incremento de até trinta milhões de dólares no comércio de uma determinada cidade. O transporte público também é um dos meios de transporte mais seguros em números absolutos, com um risco de acidentes 90% menor em relação ao transporte privado. Do ponto de vista ambiental, os sistemas de transporte público do planeta são responsáveis hoje por uma economia de quase vinte bilhões de litros de gasolina todos os anos e trinta e sete milhões de toneladas de carbono. O transporte coletivo ainda emite um 20% a menos de monóxido de carbono e um 25% a menos de óxidos de nitrogênio por milha (1,6 km) por passageiro em comparação com veículos individuais.
Embora as vantagens de um sistema de transporte público mais acessível e eficiente sejam bastante óbvias, torná-los gratuitos ainda é algo que provoca muito ceticismo. Por um lado, estudos, cenários e modelos de projeção nos fornecem dados até certo ponto limitados. Por outro, os efeitos decorrentes da instalação de um sistema de transporte público gratuito podem ser melhor avaliados na prática, graças à algumas cidades que decidiram inovar e dar este importante passo em direção ao futuro.
A Europa está na linha de frente, abrindo caminho para a consolidação da idéia de um transporte público gratuito e universal. A partir do dia 1º de março deste ano, Luxemburgo se tornará o primeiro país a oferecer transporte público 100% gratuito para todos os seus cidadãos. Entre os fatores que contribuíram para esta decisão estão os grandes deslocamento de mais de 200 mil trabalhadores que atravessam o país diariamente. A nova medida espera aliviar os constantes congestionamentos em um país que atualmente conta com o maior número de veículos per capita da Europa, além de provocar uma diminuição considerável nas emissões de gases do efeito estufa. Tal decisão não foi tomada da noite para o dia, mas através de um longo processo instaurado em etapas, começando com a gratuidade para estudantes menores de vinte anos e subsídio para outras faixas da população. O governo acredita que a gratuidade trará uma enorme economia para o país, principalmente sobre o sistema de cobrança, policiamento e administração.
A França é outro país que vem se firmando como um grande incentivador da ideia de transporte público gratuito. O país se comprometeu a proibir a fabricação de veículos à gasolina e diesel até 2040 além de proibir tais veículos de circularem na capital do país daqui a vinte anos. Considerando isso, o transporte público assumirá uma importância ainda maior na vida dos parisienses. Atualmente, 23 cidades francesas já oferecem transporte público gratuito. A maior delas — e nem tão pequena assim — é Dunquerque, cujos 257.000 habitantes tem acesso livre e irrestrito ao sistema público de transporte. A cidade constatou que, após a gratuidade, o uso do sistema de transporte público aumentou um 60% nos dias úteis e 100% nos finais de semana. Quase metade da população não usa mais o carro e cinco por cento decidiram vendê-lo logo depois da implementação da gratuidade.
A capital e maior cidade do país também está em processo de diminuir o ônus financeiro do transporte público. Em setembro de 2019, Paris lançou uma série de novas medidas em direção à gratuidade do transporte público, isentando os menores de onze anos — incluindo estrangeiros — além de gratuidade para pessoas com deficiência menores de vinte anos. Além disso, estudantes do ensino médio entre 14 e 18 anos contam com um desconte de 50% em todas as viagens, além de terem acesso gratuito ao sistema de compartilhamento de bicicletas da cidade.
Na época que a gratuidade e os subsídios foram concebidos, o especialista em transporte da Free University Brussels, Wojciech Keblowshi, observou que “o uso entre grupos vulneráveis - desempregados, idosos e jovens de famílias de baixa renda - aumentou dramaticamente quando as tarifas foram abolidas. O direito à cidade e suas oportunidades se tornam muito mais acessíveis para estes grupos de pessoas. Eles têm mais facilidade para ir em busca de emprego e aproveitar todas os benefícios que a cidade lhes oferece. Esse é um dos principais argumentos do governo francês para justificar tais mecanismos.”
Mas não é só na Europa que a iniciativa em direção à um transporte público gratuito vem ganhando força, algumas cidades dos Estados Unidos também estão começando a adotar medidas semelhantes. No ano passado, a cidade de Kansas anunciou que iria tornar parte do seu sistema de transporte público gratuito, tornando-se a primeira cidade americana a adotar a medida. Além disso, as autoridades locais disponibilizaram um investimento de oito milhões de dólares para combater a desigualdade na cidade e reforçar seu compromisso com a crise climática. O município de Olympia, em Washington, também anunciou medidas similares recentemente mostrando que este é o exemplo a ser seguido.
No estado de Massachusetts — com um histórico bastante liberal — várias cidades estão examinando e implementando sistemas similares. Conforme especificado pelo The New York Times, a segunda maior cidade do estado, Worcester, está considerando renunciar as tarifas de transporte público, um movimento que deveria custar aos cofres públicos cerca de 2 à 3 milhões de dólares anualmente. Enquanto isso, o município de Lawrence, uma cidade de aproximadamente 80.000 habitantes, recentemente deu início a implementação de um programa piloto que em dois anos pretende abolir todas as tarifas do sistema público de transporte, prevendo um aumento de aproximadamente 24% no uso global da rede pública de transporte da cidade.
Boston, a maior cidade do estado, também está examinando a viabilidade de tal sistema. O presidente do conselho municipal, Kim Janey, acredita que tal mudança é um fator-chave para combater a desigualdade social e racial no município de Boston, ele afirma que “a maioria das pessoas que utilizam o sistema público de transporte de Boston hoje são pessoas negras, e pessoas que vivem em comunidades de baixa renda.” Dito isso, Janey propôs a abolição das tarifas nas principais rotas que atravessam bairros de baixa renda da cidade de Boston.
Entretanto, a proposta de Janey foi vista com certo ceticismo pelo prefeito Marty Walsh, quem demonstrou preocupação com a viabilidade financeira da ideia. Em sintonia com o prefeito, o vice-diretor do Massachusetts Bay Transportation Authority, Brian Kane, responsável pela supervisão econômica do sistema, foi citado pelo The New York Times tendo dito “que tudo tem um custo. Alguém tem que pagar a conta. Boston tem os motoristas de ônibus mais bem pagos do país e nenhum deles vai trabalhar de graça. O consumo de combustível, a manutenção dos veículos - tudo isso também custa.” Ele argumenta que a implementação de um sistema gratuito a cidade de Boston significaria deixar de arrecadar cerca de US$ 109 milhões anualmente. Os principais defensores da gratuidade discordam, dizendo que o sistema custa apenas US$ 36 milhões por ano, os quais poderiam ser arrecadados com um simples aumento de 2 centavos no imposto sobre os combustíveis fósseis distribuídos na cidade. Recentemente neste mês, a ideia foi defendida pelo conselho editorial do The Boston Globe.
Como arquitetos, urbanistas e designers, nosso foco em relação ao transporte público é frequentemente associado à solução estética de novos conceitos e sistemas, como a estrutura do Hyperloop ou a arquitetura do futurísticos sistemas apresentados pela Uber. No entanto, não devemos nos concentrar apenas em projetos excepcionais que pretendem nos levar ao futuro —iniciativas que deverão beneficiar apenas a uma pequena parcela da população—, mas dedicar a maior atenção possível aos sistemas existentes, aqueles responsáveis pelo transporte de milhões de pessoas diariamente — isso sim pode transformar o nosso futuro. Pensar novas alternativas que possam fazer do transporte público existente mais eficiente e acessível é muito mais econômico e ambientalmente responsável do que propostas fantásticas que carregam consigo um alto custo energético, material e financeiro. Cada um de nós —arquitetos, urbanistas ou administradores públicos—, e todos aqueles que estão envolvidos com o tema de alguma maneira, devemos nos preocupar em propor soluções ousados e visionárias não apenas para estruturas arquitetônicas, mas também para nossos sistemas e infra-estruturas financeiras ligadas aos sistemas de transporte público. Já existem muitas boas iniciativas em que se espelhar.